sexta-feira, 25 de abril de 2008


Na terra do coração passei o dia pensando - coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:
Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.
Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.
Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.
Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.
Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.
Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.
Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.
Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se pôs. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.
Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.
Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.
Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.
Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: “Im too pure for you or anyone”. Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.
Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.
Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.
Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.
Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam destruindo tudo.
Meu coração é uma planta carnívora morta de fome.
Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de mim! ai, ai de mim!
Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto quem me ama, me levam junto também.
Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso. Acesa, aceso - vasto, vivo: meu coração teu.

caio fernando abreu - coração; pequenas epifanias.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Ainda bem.

Quase todo dia a minha mãe me manda sair da rotina. "Vá fazer algo de novo, que te empolgue." Raramente eu cumpro a recomendação. A verdade é que muitas vezes eu me pego presa na rotina e na preguiça de sair dela. É um ciclo vicioso.
Mas ai as vezes dá um baque e eu decido mudar. Um dia eu fui patinar no parque, no outro, comprei um tantão de roupa. Ontem, eu fui pra um bar. Ah, o bar.
O plano inicial era ir com a Jenn em um restaurante mexicano e falar mal da Martha, que mora com a gente mas faz da nossa vida um inferninho. Mas saí a Martiza me convidou pra sair e eu acabei aceitando. Liguei pra Jenn e ela topou.
Lá estava o Mauricio. Xô te explicar o Mauricio. Ele trabalha comigo e é uma pessoa extremamente... querida. É gentil, inteligente e educado. Meio gay, caindo assim, como uma luva na minha tendência. Mas de novo, ele trabalha comigo. E romance inter office é uó. E anti profissional. Decidi que não ia me apaixonar por ele, basicamente por isso e também porque ele não tem senso de humor e eu sou a rainha das tiradas escrotas (que exigem um certo humor para não me odiar e não achar que eu odeio a pessoa).
Bem, ontem no bar o Mauricio se sentou do meu lado.
Uma característica engraçada do Mauricio, mas nem tanto, é que ele odeia que lhe toquem no rosto. Não gosta muito de gente que fica abraçando. E pensa bem, se você quer dar em cima de um garoto, ter medo de tocá-lo é bem ruim, heim? Mas então, pois é. Nem era disso que eu queria falar.
Bom, ele estava do meu lado, né? E a gente tava falando de óculos. Ele usa óculos, apesar de ter 0,5 graus, o que é muito irritante, tendo em vista que eu tenho 4 em um olho e 5 em outro (ou seja, sou cega). Em um determinado momento, me perguntou: "fico melhor com ou sem óculos?". OPA. Essa era uma pergunta que eu faria. Assim, numa tentativa fracassada de flertar, porque como todo mundo sabe, eu não sei flertar. E nem pra falar que ele tava flertando, porque é uma pergunta idiota e quase natural quando se fala de usar óculos (ou não. perceba que nessa hora eu estava ficando confusa, ao mesmo tempo que quero achar que ele tá dando em cima, sei que ele não está)... e respondo que fica bem com os dois. Ele diz que é mentira.
E é.
Ou não.
Eu gosto dele de qualquer jeito. Mas ele nem compra esse meu discurso.
E quando saio do bar, algumas várias cervejas depois, eu penso "ainda bem que não tô gostando dele"... porque imagina só se estivesse.

terça-feira, 1 de abril de 2008

there's no time for fussing and fighting, my friend

Eu sempre tive problemas em julgar as pessoas. Não que isso possa ser, de algum modo, uma qualidade. Mas é hipócrita quem diz que não julga. Formar opinião sobre algo faz parte da natureza humana, e fazer isso a respeito de outros humanos é, no mínimo, natural. Sem mais divagações e tentativas vãs de achar explicação pras minhas atitudes.

O ponto é que eu tenho o péssimo hábito de julgar. E julgo mal. E sei disso. Mas a minha obsessão em avaliar o comportamento alheio não é restrita apenas ao comportamento alheio. Eu julgo o meu próprio comportamento, e acho que é isso que me dá aval para julgar o dos outros (o que não está certo, mas meu subconsciente incontrolável acha que está). E reprovar as ações de algumas pessoas não significa que amanhã, eu não possa agir de maneira idêntica, ciente de que está errado, mas com a desculpa de que eu posso porque "eu sou assim", é inevitável, e que eu estou apenas agindo de acordo com a minha personalidade.

Conhecer alguém, não gostar e não dar chance pra, pelo menos, entender determinadas atitudes é algo que eu faço. Com frequência.
Uma vez alguém me disse: "é pior quando você gosta de alguém muito rápido e vai descobrindo coisas que te fazem se decepcionar". Naquele momento, eu concordei. Mas pensando um pouco mais, não sei se é mais fácil responsabilizar o outro, ou saber que a culpa da maioria das suas decepções é sua. Você que exige demais e que é egoísta demais para tentar enxergar o mundo com outros olhos, sob outras luzes, outros aspectos.
O que me deixa menos desesperançosa (comigo mesma, obviamente) é que as vezes, por insistência da vítima do meu mordaz julgamento, ou do destino, eu acabo conhecendo e entendendo a pessoa. O que, na maior parte dos casos, se mostra uma grande e boa surpresa.

Quem sabe assim, me arrependenda dos meus julgamentos? Talvez, vendo que eu erro na maior parte das vezes, amadureça e faça as coisas na ordem que devem ser feitas: formo opinião apenas depois que tiver conhecimento de causa.

(we never learn, do we?)